Intoxicação por Metanol no Brasil: causas, sintomas, diagnóstico e tratamento
Tudo que você precisa saber sobre a intoxicação por metanol que vem desestabilizando o Brasil
Dr Nicolas Zanin
10/1/20255 min read


Intoxicação por Metanol no Brasil: causas, sintomas, diagnóstico e tratamento
Nos últimos meses, observou-se um aumento expressivo de casos de intoxicação por metanol no Brasil, especialmente no estado de São Paulo. Apenas entre agosto e setembro, foram notificadas mais de uma dezena de ocorrências, número que já se aproxima da média anual registrada no país, que gira em torno de 20 casos. Esse crescimento repentino sugere não apenas a possibilidade de surtos localizados, mas também levanta preocupações sobre adulteração de bebidas alcoólicas e falhas de fiscalização em processos de produção e comercialização.
Embora relativamente rara, a intoxicação por metanol é extremamente grave e pode evoluir rapidamente para sequelas irreversíveis, incluindo cegueira, ou até mesmo óbito. O domínio dos mecanismos fisiopatológicos, dos sinais clínicos e das principais estratégias de diagnóstico e tratamento é essencial para acadêmicos e profissionais da saúde, principalmente em um cenário de risco aumentado como o atual.
O que é o metanol e por que é tão perigoso?
O metanol (CH₃OH) é um álcool pertencente ao grupo dos álcoois tóxicos, que inclui também etilenoglicol, dietilenoglicol e isopropanol. Trata-se de uma substância de uso industrial e doméstico, presente em solventes, líquidos de limpeza, produtos para desembaçar vidros, combustíveis e até fluidos usados em aeromodelismo. Diferentemente do etanol, que pode ser metabolizado de forma relativamente segura pelo organismo, o metanol apresenta uma toxicidade severa ligada ao seu metabolismo hepático.
Após a ingestão, o metanol é rapidamente absorvido pelo trato gastrointestinal e distribuído pela água corporal. Seu metabolismo ocorre em duas etapas principais: inicialmente, a enzima álcool desidrogenase converte o metanol em formaldeído, composto altamente reativo. Em seguida, a aldeído desidrogenase transforma o formaldeído em ácido fórmico. Este último é o grande responsável pelos efeitos tóxicos, pois sua eliminação é lenta e limitada. À medida que se acumula, o ácido fórmico inibe a cadeia respiratória mitocondrial, levando à hipóxia celular, acúmulo de lactato e acidose metabólica com anion gap aumentado.
A vulnerabilidade da retina e dos núcleos da base explica por que os sintomas oculares e neurológicos são tão característicos nessa intoxicação. Além disso, o envolvimento sistêmico pode gerar complicações como pancreatite e lesão renal aguda, reforçando o potencial de gravidade do quadro.
Manifestações clínicas e período de latência
Uma das grandes dificuldades no manejo da intoxicação por metanol é o período de latência. Nas primeiras 12 a 24 horas após a ingestão, o paciente pode estar assintomático ou apresentar apenas sinais inespecíficos de embriaguez leve. Essa ausência inicial de sintomas específicos atrasa a busca por atendimento e compromete a precocidade do diagnóstico.
À medida que os metabólitos tóxicos se acumulam, surgem manifestações gastrointestinais, como náuseas, vômitos e dor abdominal, seguidas de sintomas neurológicos, como sonolência, confusão mental e hiperventilação compensatória da acidose. O comprometimento visual é marcante e progressivo, com queixas de visão borrada, fotofobia, percepção de halos luminosos e diminuição da acuidade visual. Em exames oftalmológicos, podem ser observados papiledema e hiperemia do disco óptico. Nos casos mais graves, o quadro evolui para coma, falência respiratória e morte.
Avaliação diagnóstica
O diagnóstico da intoxicação por metanol exige a integração de dados clínicos, laboratoriais e epidemiológicos. Como os sintomas iniciais são inespecíficos, a história de exposição tem papel central. Situações envolvendo ingestão de bebidas clandestinas ou produtos industriais devem sempre levantar suspeita.
Nos exames laboratoriais, dois parâmetros são particularmente úteis: o gap osmolar e o anion gap. Nas fases iniciais da intoxicação, predomina o aumento do gap osmolar devido à presença do metanol no sangue. Já nas fases tardias, quando há maior produção de ácido fórmico, a acidose metabólica com anion gap aumentado torna-se a principal alteração. O diagnóstico definitivo, no entanto, depende de métodos como cromatografia gasosa ou líquida, que são complexos, caros e nem sempre disponíveis.
A dosagem de etanol sérico também tem importância, pois sua presença retarda a metabolização do metanol, podendo modificar a evolução clínica. Exames complementares, como eletrólitos seriados, função renal, gasometria arterial e avaliação oftalmológica, são fundamentais para o acompanhamento.
Abordagem terapêutica
O tratamento deve ser iniciado imediatamente após a suspeita, sem esperar pela confirmação laboratorial. O tempo é um fator crítico: estudos clínicos mostram que a mortalidade é baixa quando o tratamento é precoce, mas pode ultrapassar 40% em casos de atraso.
A base da terapia é impedir a formação dos metabólitos tóxicos. O fomepizol é o antídoto preferencial, pois bloqueia de forma eficaz a ação da álcool desidrogenase, interrompendo a metabolização do metanol. A administração é intravenosa, em doses ajustadas conforme evolução clínica e parâmetros laboratoriais. Quando o fomepizol não está disponível, o etanol pode ser utilizado como alternativa, competindo pelo mesmo sítio enzimático. No entanto, exige maior monitorização, geralmente em ambiente de terapia intensiva, para evitar complicações da própria intoxicação alcoólica.
A hemodiálise desempenha papel essencial, especialmente em casos graves. Além de remover rapidamente o metanol e o ácido fórmico, corrige a acidose metabólica e restaura o equilíbrio hidroeletrolítico. As indicações incluem acidose grave, coma, convulsões, déficits visuais recentes ou concentrações séricas elevadas.
Como medida complementar, a administração de folinato de cálcio pode ser utilizada para acelerar a conversão do ácido fórmico em dióxido de carbono e água. Embora os benefícios clínicos ainda sejam considerados teóricos, trata-se de uma prática adotada em diversos protocolos. A correção da acidose com bicarbonato e o suporte intensivo completam o manejo.
Implicações epidemiológicas e saúde pública
Os casos recentes no Brasil reforçam a necessidade de vigilância epidemiológica e educação em saúde. A contaminação de bebidas alcoólicas clandestinas com metanol não é um fenômeno isolado. Diversos países já enfrentaram surtos com dezenas ou centenas de vítimas, como ocorreu na Estônia em 2001 e na Noruega entre 2002 e 2004. No contexto brasileiro, a adulteração de bebidas em locais sem fiscalização adequada pode representar risco semelhante.
A notificação imediata dos casos suspeitos aos Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) é fundamental para permitir investigação epidemiológica, identificar fontes de exposição e orientar o manejo clínico. A integração entre serviços de saúde, autoridades regulatórias e comunidade médica é determinante para prevenir novos casos e reduzir o impacto de surtos.
Considerações finais
A intoxicação por metanol é um exemplo clássico de emergência toxicológica com repercussões clínicas, laboratoriais e sociais. Apesar de rara, apresenta alta letalidade e risco de sequelas permanentes, como cegueira. O aumento recente de casos no Brasil torna urgente a capacitação dos profissionais de saúde e o alerta entre acadêmicos de medicina.
O reconhecimento precoce dos sintomas, a suspeita clínica em contextos epidemiológicos sugestivos e a rápida instituição de medidas terapêuticas são determinantes para salvar vidas. O uso de antídotos como fomepizol, o papel crucial da hemodiálise e a necessidade de suporte intensivo devem fazer parte do conhecimento básico de quem atua na linha de frente. Ao mesmo tempo, a discussão sobre metanol envolve também saúde pública, regulamentação e fiscalização, mostrando como a prática médica se integra a desafios mais amplos da sociedade.